quarta-feira, 23 de setembro de 2015

William Tyndale: Sua Tradução da Bíblia e Seu Papel como Pré-Reformador na Igreja da Inglaterra

A chegada do protestantismo à Inglaterra está ligada às confusões amorosas do rei Henrique VIII. Após um casamento fracassado com Catarina de Aragão, filha dos reis católicos da Espanha (do qual nasceu Maria Tudor), na ânsia de ter um filho homem, ele veio a se casar outras cinco vezes, deixando como herdeiros Edward VI (filho de Jane Seymour) e Elizabeth I (filha de Ana Bolena). Em 1534, foi promulgado o Ato de Supremacia, tornando o rei a cabeça suprema da igreja da Inglaterra. Com a anulação do casamento com Catarina de Aragão, sobrinha de Carlos V, o rei Henrique VIII e o Parlamento inglês separaram a igreja da Inglaterra de Roma, em 1536.

Os livros de Lutero circulavam livremente nas universidades de Oxford e Cambridge. Muitos estudiosos ingleses leram Do cativeiro babilônico da igreja, uma crítica ao sistema sacramental da igreja de Roma. A princípio, Henrique VIII favoreceu a Reforma, mas depois, de 1539 a 1547, perseguiu os protestantes. O rei morreu doutrinariamente católico romano. A Reforma foi um retorno à Escritura. Martinho Lutero a traduziu para o alemão, e João Calvino apoiou a preparação de uma tradução francesa. Na Inglaterra, aconteceu algo bem semelhante.

O pai da Bíblia inglesa

William Tyndale nasceu em 1495, em Slymbridge, Inglaterra, perto da fronteira do País de Gales. Recebeu seu mestrado em 1515, pela Magdalen College, na Universidade de Oxford, onde havia estudado as Escrituras em grego e em hebraico. Ele também estudou em Cambridge, que estava tomada por idéias luteranas. Provavelmente Tyndale adquiriu suas convicções protestantes estudando lá. Ele foi ordenado ao sacerdócio em 1521. Mais tarde, expressou sua insatisfação com o ensino de teologia: "Nas universidades eles determinaram que nenhum homem olhasse para as Escrituras até que fosse embebido com aprendizagem pagã por oito ou nove anos, e armado com falsos princípios que claramente o impediam de compreender as Escrituras".

Tyndale tornou-se tutor da família de Sir John Walsh, em Little Sodbury Manor, ao norte de Bath. Enquanto estava morando nessa casa, ele ficou alarmado com a ignorância do clero local — muitos sacerdotes paroquiais da igreja católica, nos dias de Tyndale, eram tão corruptos que ficaram conhecidos como bêbados comuns, que recebiam regularmente prostitutas em suas igrejas! Até o cardeal Thomas Wolsey, o representante pessoal do papa na Inglaterra, viveu com uma companheira por vários anos e teve dois filhos, tendo-a passado, depois, para outro homem, com um dote!

Então, ao completar 30 anos, Tyndale já havia devotado sua vida à tarefa de traduzir a Bíblia das línguas originais para o inglês. O desejo de seu coração é ilustrado na declaração feita a um clérigo, enquanto refutava a concepção de que apenas o clero estava qualificado a ler e interpretar corretamente a Escritura: "Se Deus me conceder vida, não levará muitos anos e farei com que um rapaz que conduza um arado saiba mais das Escrituras do que vós". A única tradução da Escritura em inglês, naquele tempo, era a versão de John WyclifFe, disponível numa versão manuscrita e com várias imprecisões, que havia sido traduzida da Vulgata — a tradução em latim, feita por Jerônimo (347-420).

O fora-da-lei de Deus

Em 1523, Tyndale partiu para Londres em busca de um local para trabalhar em sua tradução. Quando se tornou óbvio que o bispo de Londres, o erudito Cuthbert Tunstall, que era amigo de Erasmo de Roterdã, não lhe daria hospitalidade, foi-lhe providenciado um lugar por Humphrey Monmouth, que era um rico negociante de tecidos. Segundo Tony Lane, "os bispos estavam mais preocupados em impedir a propagação das idéias de Lutero na Inglaterra do que em promover o estudo da Bíblia". Então, em 1524, Tyndale deixou a Inglaterra e foi para Hamburgo, na Alemanha, porque a igreja inglesa, que ainda estava sob autoridade papal, se opunha completamente a colocar a Bíblia nas mãos do povo. Ele disse que "não somente não havia lugar no palácio de meu senhor em Londres para traduzir o Novo Testamento, mas que também não havia lugar para fazê-lo por toda a Inglaterra".

Segundo Martin Lloyd-Jones, Tyndale tinha um ardente desejo de que o povo comum pudesse ler as Escrituras. Mas havia grandes obstáculos em seu caminho... Ele lançou uma tradução da Bíblia sem o endosso dos bispos [...]. Era inimaginável que tal coisa fosse feita sem o consentimento e o endosso dos bispos, como fez Tyndale. Outra ação de sua parte [...] foi que ele saiu da Inglaterra sem permissão real. Esse também era um ato bastante incomum, e altamente repreensível aos olhos das autoridades. No entanto, no anseio por traduzir as Escrituras, Tyndale deixou o país sem o consentimento do rei e foi para a Alemanha, onde, com a ajuda de Lutero e de outros colaboradores, completou sua grande obra. Essa atitude significava a colocação da verdade antes das questões de tradição e autoridade, e uma insistência na liberdade de servir a Deus da maneira como cada qual julga certa.

É muito provável que Tyndale, tão logo tenha chegado à Alemanha, se encontrou com Lutero, em Wittenberg. Mesmo que tal fato não houvesse ocorrido, ele tinha pleno conhecimento dos escritos de Lutero e da sua tradução do Novo Testamento (publicado em 1522). Tanto Lutero quanto Tyndale usaram o mesmo texto grego para fazer suas traduções: uma compilação feita por Erasmo, em 1516.

No início de 1525, o Novo Testamento estava pronto para impressão. E estava sendo impresso em Cologne, quando as autoridades atacaram de surpresa a gráfica. Tyndale conseguiu escapar a tempo, levando consigo algumas páginas impressas. Apenas um exemplar dessa edição incompleta sobrevive. O fato aconteceu numa época em que pelas leis da igreja católica na Inglaterra constituía crime passível de morte traduzir a Bíblia para o inglês — em 1519, as autoridades da igreja queimaram publicamente uma mulher e seis homens por nada mais do que ensinar aos seus filhos versões em inglês do Pai-Nosso, dos Dez Mandamentos e do Credo dos Apóstolos!

A tradução de Tyndale do Novo Testamento só foi completada em 1526, em Worms, na Alemanha. Quinze mil exemplares, em seis edições, foram contrabandeados para a Inglaterra, entre os anos de 1525 e 1530. As autoridades da igreja fizeram o que podiam para confiscar esses exemplares e queimá-los, mas não conseguiram conter o fluxo de Bíblias da Alemanha para a Inglaterra. O arcebispo William Warham de Canterbury comprou um grande número de exemplares do Novo Testamento, para destruí-los — ironicamente acabou financiando uma edição melhor e mais numerosa! Como disse John Foxe na época, "Deus abrira a máquina de impressão para pregar"!

Não podendo mais retornar para a Inglaterra, porque sua vida estava em perigo desde que a tradução fora proibida, Tyndale continuou a trabalhar no exterior, corrigindo, revisando e reeditando sua tradução, até que uma versão revista e definitiva foi publicada em 1535. Sua tradução tinha um estilo popular e era dirigida ao homem simples, tornando as Escrituras acessíveis a todos. Exemplares desse Novo Testamento, levados por mercadores à Escócia, contribuíram também para a promoção da fé evangélica naquele país.

Em 1534, Tyndale mudou-se para Antuérpia, na Bélgica, morando na residência de Thomas Poyntz, um mercador inglês, para completai a ttadução do Antigo Testamento. Mas, pouco depois, em maio de 1535, ele foi traído por um colega inglês, Henry Phillips, um mau-caráter, em Antuérpia. Assim, ele foi detido e levado para um castelo perto de Bruxelas, em Vilvoorde. Depois de estar na prisão por mais de um ano, foi julgado e condenado à morte. Em 6 de outubro de 1536, Tyndale foi estrangulado e queimado na fogueira. Suas palavras finais foram comoventes: "Senhor, abra os olhos do rei da Inglaterra".

Tyndale havia começado a trabalhar na tradução do Antigo Testamento, mas não viveu o suficiente para completar sua obra. Havia, entretanto, traduzido o Pentateuco, os livros históricos (até 2Crônicas) e Jonas. Esse homem simples, de origem comum, dominava sete idiomas: hebraico, grego, latim, italiano, espanhol, inglês e francês. Além disso, ele estava tão familiarizado com o alemão que era capaz de traduzir e interpretar até mesmo os pontos mais elaborados dos escritos de Lutero.

Enquanto Tyndale esteve preso, um dos seus colaboradores, Miles Coverdale, levou a cabo a tradução inteira da Bíblia para o inglês, baseada em grande parte na tradução do Novo Testamento e de outros livros do Antigo Testamento feita por Tyndale. O rei Henrique VIII proclamou: "Se não há heresias nele, que seja espalhado largamente entre todas as pessoas!". Por volta de 1539, requereu-se que cada igreja na Inglaterra tivesse disponível uma cópia da Bíblia em inglês. De forma irônica, Coverdale terminou o que Tyndale havia começado.

A tradução de Tyndale tem tido uma imensa influência, e pode-se dizer que todo o Novo Testamento em inglês, até este século, foi meramente uma revisão do Novo Testamento de Tyndale. Cerca de 90% das suas palavras passaram para a versão do rei Tiago, de 1611, e cerca de 75% para a Versão Revisada Padrão, de 1952. O impacto do trabalho de Tyndale se reflete nas palavras que Edward Fox, bispo de Hereford, dirigiu a seus colegas bispos: "Não vos exponhais ao ridículo do mundo; a luz brotou, e está melhor dispersando todas as nuvens. Os leigos conhecem as Escrituras melhor do que muitos de nós".

O apóstolo da Inglaterra

Tyndale escreveu várias obras, das quais as mais conhecidas são Parábola da riqueza exagerada — um tratado sobre a justificação pela fé somente, onde ele recorreu fortemente a Lutero, algumas vezes só traduzindo seus escritos —, e Obediência do homem cristão — sobre o dever de obedecer às autoridades civis, exceto quando a lealdade a Deus está envolvida —, ambas de 1528.

Thomas More atacou vigorosamente "o capitão dos hereges ingleses", referindo-se a Tyndale, que escreveu uma réplica a ele, Uma resposta ao diálogo de Sir Thomas More, de 1531, que é a melhor exposição de seu entendimento teológico. Pata More, a verdadeira igreja era a igreja católica romana, a qual ele considerava infalível. Qualquer um que se opusesse ao papa, a qualquer de seus representantes ou a alguma doutrina da igreja era, aos olhos de More, um herético. Por causa dessa crença, More mandou queimar muitos evangélicos na estaca.

Para Tyndale, "a verdadeira autoridade para a fé deveria ser encontrada na Escritura, e qualquer pessoa ou grupo que negasse a autoridade da Escritura estava, em sua percepção, sob o controle do anticristo". More e Tyndale eram incapazes de chegar a um acordo, por causa de suas diferentes perspectivas sobre a fé cristã.

Outras de suas obras foram: Uma exposição da primeira epístola de São João (1531), Uma exposição de Mateus 5 a 7 (1533) e Uma pequena declaração sobre os sacramentos (publicada postumamente, em 1548). O livro Um prólogo para a epístola de São Paulo aos Romanos apareceu pela primeira vez na edição de 1534 do Novo Testamento em inglês. Esse prólogo foi impresso em separado, em Worms, Alemanha, em 1526, apresentando muitos pontos de semelhança com o prefácio que Lutero também escreveu de Romanos. Mas Tyndale não foi um simples eco de Lutero:

"Visto que esta epístola é a principal e a mais excelente parte do Novo Testamento, e o mais puro Evangelion, quer dizer, boas-novas e aquilo que chamamos de Evangelho, como também luz e caminho, que penetra o conjunto da Escritura, creio que convém que todo cristão não somente a conheça de cor, mas também se exercite nela sempre e sem cessar, como se fosse o pão cotidiano da alma. Na verdade, ninguém pode lê-la demasiadas vezes nem estudá-la suficientemente bem. Sim, pois, quanto mais é estudada, mais fácil fica; quanto mais é meditada, mais agradável se torna, e quanto mais profundamente é pesquisada, mais coisas preciosas se encontram nela, tão grande é o tesouro de bens espirituais que nela jaz oculto."

Mais para o fim do prólogo, ele diz:

"Portanto, parece evidente que a intenção de Paulo era abranger resumidamente nesta epístola, de modo completo, todo o aprendizado do evangelho de Cristo, e preparar uma introdução ao Velho Testamento. Sim, pois, quem tem inteiramente no coração esta epístola, tem consigo a luz e a substância do Velho Testamento. Daí que todos os homens, sem exceção, se exercitem nela com diligência e a recordem noite e dia, até se familiarizarem com ela completamente [...]."

A fé é, então, uma confiança viva e firme no favor de Deus, por meio do qual nós nos entregamos completamente a ele. E essa confiança é tão seguramente estabelecida em nossos corações, que um homem não poderia duvidar dela, embora ele morresse mil vezes por isso. E tal confiança, operada pelo Espírito Santo através da fé, faz um homem contente, vigoroso, bem disposto e sincero para com Deus e para com as outras criaturas.

Assim, embora Tyndale não tenha vivido para ver o resultado daquilo que empreendeu, sua causa triunfou, bem como sua tradução.

Autor: Franklin Ferreira
Fonte: http://www.josemarbessa.com/2010/09/william-tyndale-1484-1536-nao-vivam.html

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